Prólogo de Camiño Noia
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A aparição no mercado de Cores do Atlântico é um grande acontecimento para todas as pessoas que gostam de boa música, e de forma especial para Nós, gente deste canto peninsular; um território que hoje se conhece como Euro-região Galiza-Norte de Portugal e a que eu prefiro chamar Gallaecia, como lhe chamaram os colonizadores romanos.

A saída dum produto cultural de qualidade é sempre um acontecimento importante para aqueles que o recebem, mas, neste caso, acrescem ainda duas razões. A primeira advém do facto de se tratar de cantos alicerçados no nosso património popular, aqueles que cantavam as mulheres de aquém e de além Minho, nas suas longas horas de trabalho e nos seus escassos momentos de lazer. E esse importantíssimo legado galego-português, de que hoje usufrui a Humanidade, está, neste CD, enriquecido com as melodias adoçadas no novo mundo pela fusão de culturas de distintos povos, graças ao trabalho de composição e interpretação de Socorro Lira, que fez um magnífico trabalho de mestiçagem entre os velhos temas de amor e saudade e os alegres ritmos tropicais. Uma obra que, nascida da tradição oral do Noroeste da Península Ibérica, está enxertada na cultura dos novos países de língua portuguesa com os quais partilhamos o nosso património linguístico e cultural.

A segunda razão pela qual Cores do Atlântico é importante reside na numerosa presença de mulheres. Porque, como dizemos, foram as mulheres, e não os homens, quem compôs as cantigas de amigo; eles transcreveram-nas, assinaram-nas e, alguns, as terão cantado acompanhados de cítaras, sanfonas e de outros instrumentos. Mas a criatividade e, portanto, a autoria, essa é das mulheres galegas e portuguesas que viveram nos séculos XII e XIII da Idade Média. E tanto nos faz que seja Mendiño, Martín Codax, Joan de Cangas ou Pero Meogo quem as rubricasse, porque estamos certas de que essa rubrica oculta a autoria duma mulher. E, muito provavelmente, seria o próprio copista quem usaria o pseudónimo para assinar as cantigas que transcrevia, respeitando o anonimato da autora.
O CD contém 16 cantigas de amigo, selecionadas pela autora e intérprete Socorro Lira, com a colaboração de Ria Lemaire, entre as cem cantigas paralelísticas guardadas nos cancioneiros medievais. Com elas, Socorro quer homenagear, neste CD, as cantadeiras da sua terra do Nordeste do Brasil que ela tem ouvido cantar nas horas da apanha do algodão e da fruta, «puxando o verso» ao cantar. Do mesmo modo, as nossas antepassadas galegas e portuguesas cantavam e desafiavam-se enquanto segavam, iam à fonte ou desfolhavam o milho ou debulhavam as favas, na eira. Em palavras de Ria, «a canção era ao mesmo tempo trabalho, divertimento, exercício mental e poético». Em todo o mundo, as mulheres, sem deixarem de trabalhar duro, foram criando e transmitindo a cultura popular, que depois outros transformaram em alta cultura.

Acompanham a música do CD dois textos introdutórios que enriquecem a obra, um que explica o projeto Cores do Atlântico e o outro, da professora holandesa Ria Lemaire, no qual ela analisa a origem, a estrutura e os ritmos das cantigas de amigo, dando-lhes uma nova interpretação, diferente da que aprendemos de anteriores especialistas no tema. Explica Ria, com grande maestria, exemplificando com dados aquilo que afirma, como a interpretação dos académicos, hoje canonizada, se baseava na «visão do mundo, da natureza, do amor e da mulher» que mantinha a burguesia europeia, desde o século XIX. Uma conceção patriarcal que foi dominante em todos os âmbitos culturais, e que se propagou nas universidades e nos centros de ensino secundário como verdade intocável.

Conheci a Socorro Lira em Setembro de 2006, em S. Salvador da Baía cantando acompanhada pela sua guitarra e fiquei comovida pela formosura da sua voz. Ao saber que residia em Vigo, falou-me do projeto de musicar cantigas de amigo e do seu desejo de visitar a ilha de San Simón. Na sua primeira viajem à Galiza, Socorro foi cantar à Faculdade de Filologia e Tradução de Vigo e, num entardecer mágico visitámos, com Gonzalo Navaza, a ilha de San Simón; a ilha de amor e de morte que percorremos os três sozinhos, contemplando os lugares sagrados do mar de Vigo, enquanto íamos recitando «Quantas sabedes amar amigo/ treydes comig’a lo mar de Vigo./E banhar-nos-emos nas ondas!», «Sedia-m’eu na ermida de San Simión/ e cercaron-mi as ondas que grandes son./ Eu atendendo meu amigo», «Ay ondas, que eu vin veer,/se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ Sen min?»

Na segunda viajem à Gallaecia, Socorro trazia musicadas as suas cantigas de amigo para editar num CD. A minha surpresa foi enorme quando soube que, no projeto, participava a medievalista Ria Lemaire. A obra desta mulher servira-me de apoio na minha arriscada tese sobre a autoria feminina das cantigas de amigo, e, por fim ia ter oportunidade de a conhecer. Foi um dia em Baiona, numa viagem a Portugal, que nos encontramos. A partir daí, mantivemos relações e voltamos a encontrar-nos noutras ocasiões, com e sem a Socorro. Numa das viagens a Vigo, as criadoras do projeto encontraram-se com Santi Veloso e a sua equipe de «Ponte... nas ondas!», e esse encontro seria determinante na gestação do CD Cores do Atlântico. Um presente com o qual «Ponte...nas ondas!» quer comemorar os quinze anos de trabalho na defesa do património imaterial da Euro-região Galiza-Norte de Portugal envolvendo nela os estudantes deste território. Um trabalho que aplaudimos até porque se ocupa dum património que, sem qualquer sombra de dúvida, merece que a Unesco lhe outorgue o galardão de ser declarado Património da Humanidade.

Cores do Atlântico é, em síntese, uma obra diferente, inovadora, da qual desfrutarão os espíritos abertos; mas é também uma criação transgressora que, talvez chegue a escandalizar os espíritos dos académicos tradicionais que não gostam de inovações. Pois, além da ousadia de devolver às mulheres a autoria das composições paralelísticas, a obra subverte a cultura canónica ao fundir a lírica medieval com os ritmos afro-brasileiros.

Porém, a mestiçagem cultural das composições do velho mundo galego-português vem enriquecer a cultura peninsular com evocadoras sonoridades de mundos distantes que projetam o nosso património galego-português em direção a um futuro de universalidade.
Camiño Noia
Março 2010